Manifesto Oil Fantasy #09 - Preservando a Agência do Jogador


Continuamos analisando um bom desafio, segundo Oil Fantasy. Já vimos que ele propõe um problema que pode ser selecionado, sinaliza oportunidades atreladas à sua superação, comporta perigos e oportunidades paralelos, promove amplitude de soluções e agora vamos abordar a preservação da agência do jogador. Vamos lá?

Engajamos com jogos através de nossas decisões. 

Quando as ações que tomamos não fazem qualquer diferença, elas se esvaziam de significado, os jogadores não sentem que estão jogando e acabam por se desinteressar pelo jogo. 

É o que acontece quando sentimos que, independente do caminho que os jogadores tomem na caverna, as mesmíssimas coisas vão acontecer. Não importa se os personagens escolheram rumar para as colinas ou para a floresta, lá estará o Ogro Quântico, esperando por eles. É o clássico problema de falta de agência.

Agência do Jogador

Janet Murray definiu: "Agência é o poder satisfatório de realizar ações significativas e observar o resultado de nossas decisões e escolhas. Nós esperamos sentir a agência quando, no computador, clicamos em um arquivo e o vemos abrir, ou quando digitamos números em uma planilha e observamos os totais se reajustarem."

Em jogos de RPG focados em desafio, principalmente Oil Fantasy, que tem ênfase em riscos significativos, a falta de agência costuma ter um problema bem grave. Se você já perdeu um personagem que morreu sem que você tivesse dado causa à sua morte através de suas decisões, você sabe bem.

Portanto resolvemos dar a nossa versão de agência do jogador para Oil Fantasy, trabalhada em três pilares, focados no foco em desafio:

Liberdade de decisão: por mais que nos RPGs a liberdade seja quase irrestrita, isso não quer dizer que os jogadores possam tomar decisões que ignorem a verossimilhança da ficção, suas limitações de personagem e seu papel no jogo. Porém, respeitando essas questões, eles devem ter total liberdade para decidir como devem proceder, sem serem induzidos ou coagidos a fazer escolhas por outros participantes, em especial o mestre.

Um exemplo de falta de liberdade: imagine que o mestre não preparou o que há dentro de uma cidadela e não está a fim de improvisar. Os jogadores se aproximam e decidem que querem entrar. Para impedir isto, ele cria um inimigo invunerável, que jamais deixará que os personagens dos jogadores entrem pelos portões. Os jogadores não têm liberade nem para ao menos tentarem.

Mestre: Vocês chegam na planície encardida depois de horas de viagem, cansados e igualmente encardidos. Ao longe vocês vêem a cidadela, único marco da paisagem árida.

Jogadores: Estamos cansados e fedidos, é importante passar lá para conseguir uma cama quente e um bom ensopado. Vamos em direção à cidadela então!

Mestre: Ok vocês chegam lá e há um sujeito bruto, um armário, três-por-dois. Quando percebe vocês se vindo ao longe, segura sua lança com 2 mãos em pose ameaçadora.

Jogadores: Vamos nos aproximar para entender melhor essa figura.

Mestre: É um humanóide com cara de porco e elmo de chifrinho, segurando ameaçadoramente sua arma em frente aos portões da cidadela. Ele faz um barulho bestial.

Jogador 1: Acho que é melhor abortar essa visita à cidadela, vamos continuar a travessia?

Jogador 2: De jeito nenhum! Deixa eu tentar algo aqui. Mestre, vou me aproximar apenas o suficiente para fazer um feitiço de encantar pessoas nesse humanóide.

Mestre: Ok, você se aproxima dele e faz sua magia, mas ela não funciona. Ele vem pra cima de você com a lança em riste.

Jogador 2: Mas a magia falhou assim, sem mais nem menos?

Mestre: Só não funcionou. O que os outros vão fazer?

Jogador 3: Vou correr pra cima do brutamontes e dar uma rasteira, aproveitando a corrida inconsequente dele. Rolo um ataque?

Mestre: Não! Ele passa direto e você erra a rasteira. Ele coloca a lança no pescoço do mago e grita: humanos não entram aqui. Vão embora!

Jogador 1: Eu abro meu saco de moedas e ofereço a ele 300 moedas de ouro para ele nos deixar entrar.

Mestre: Ele não aceita e repete: humanos sujos não entram aqui. Vão embora! E ameaça furar o mago.

Jogador 4: Enquanto eles brigam, vou escalar o muro e pular.

Mestre: Você até consegue escalar mas sente que há ma força que te empurra de cima do muro e você cai.

Jogadores: É, vamos embora. A cidadela encardida é um lugar bobo.

Nesse caso, o mestre determinou que nada poderia abrir caminho para o grupo entrar na cidadela e isso tira de forma arbitrária a liberdade dos jogadores tomarem decisões plausíveis, verossímeis e que não tem nenhum motivo para serem negadas. É um caso de quebra de agência do jogador por falta de liberdade.

 
Decisões informadas: os jogadores devem poder coletar informações suficientes para que tomem decisões informadas, conscientes minimamente dos riscos e oportunidades envolvidos. O mestre, ao descrever o mundo de aventuras não deve lhes sonegar informações a que eles deveriam ter acesso.

Um exemplo de problema de agência por falta de informação: o mestre quer que o grupo inadertidamente transporta para longe uma criança de importância vital para uma religião tirana que se instalou na cidade, conhecida como Deus Menino.

Mestre: Quando vocês acordam, em frente ao albergue já está pronta a carroça com as caixas de madeira e os 2 burricos para a viagem. O burgomestre espera ao lado, comendo uma broa de milho, com o pagamento pelo serviço em um saco de veludo, em seu ombro.

Jogador 1: Vou me apresentar e sem trocar muitas palavras, vou pedir para inspecionar as caixas.

Mestre: Ele diz que só tem garrafas e sacos com grãos.

Jogador 1: Mas vou inspecionar assim mesmo, ok?

Mestre: Ok, você vê cereais embalados, caixas de bebida fermentada e outros mantimentos, vão seguir viagem?

Jogadores: Vamos!

Mais tarde o mestre faz os personagens encontrarem uma patrulha da cidade na estrada que pedem para checar a carga. O grupo permite, porque sabe que não tem nada demais ali, mas de repente os soldados descobrem o menino em sono profundo, amarrado, dentro do saco. Sequestro de um semi-deus como o deus menino é crime capital e aos jogadores foi sonegada informação que lhes permitisse medir risco e recompensa ao topar a missão.

Este tipo de recurso de sonegar informações é muito utilizado por mestres quando querem criar plot twists e explodir as mentes dos jogadores, mas em jogos estilo Oil Fantasy é vital que os jogadores possuam informações mínimas e sejam capazes de investigar com plenitude as situações para delimitar problemas e tomarem decisões significativas.


Impacto proporcional: Uma vez cientes minimamente do riscos que podem assumir com suas decisões, é vital que o impacto das mesmas seja sentido no mundo de aventuras, na mesma proporção das ações tomadas, seja em favor ou em prejuízo do personagem.

Um exemplo de problema de agência por falta de impacto: os jogadores retornam de uma dungeon cheios de tesouro e não se importam em ostentar efusivamente todas as riquezas que coletaram, quando chegam à cidade.

Gastam muito ouro na taverna, arredondam todos os preços em prata para ouro sem negociar, andam pelas ruas cheios da grana e não se importam em contar a todos seus feitos e conquistas.

Aqui é importante que o mestre dê impacto às ações dos jogadores, tanto para o bem quanto para o mal. Podemos pensar que o tesouro espalhado pelas ruas da cidade inflacionem o mercado para os aventureiros, que possivelmente construíram algum tipo de reputação com o povo e com outros aventureiros, que tenham despertado a cobiça de governantes atrás de impostos, que tenham mais facilidade de encontrar tocheiros e guias para as próximas aventuras e que tenham até bandidos já tramando golpes e emboscadas, etc.

Se nada disso acontecer, os jogadores sentirão que suas decisões, conquistas e falhas não surtem efeito na ficção, em todo ou em parte, o que leva a um sentimento de perda de agência. É importante que os resultados seja sentidos de forma proporcional ao impacto que suas ações causam, nem além, nem aquém. 

 

Há um outro exemplo, mais polêmico: o jogador assume um risco e o mestre até especifica: sua chance de cair desse precipício é de 2:6, vai tentar pular? Atraído por um ídolo de ouro do outro lado da imensa fissura na rocha, o jogador topa a aposta e anuncia que seu personagem vai saltar.

Caso o jogador role 1 ou 2 no d6, é importantíssimo que o personagem despenque, de fato. Se o mestre derivar da solução combinada na arbitragem e do risco assumido pelo jogador, certamente há uma quebra de agência por falta de impacto. 

Os impactos disso são mais profundos do que parece: o mestre admite que tem poderes de vida e morte sobre os personagens, acima das decisões que tomaram, os jogadores sentem que podem ser salvos indepentende dos riscos que assumem e passam a calcular menos suas chances em jogo, baseados na ficção, e mais derivan sua atenção à vontade do mestre e convencimento, além de um redesenho amplo de responsabilidades em jogo que coloca o mestre no papel de dono da narrativa emergente e dono da experiência em mesa, sinalizando que pode exercer uma arbitrariedade sem amarras tanto para o bem quanto para mal.


Se você reexaminar agora grande parte dos cuidados que prescrevemos neste Manifesto até aqui, principamente nesta construção de um bom desafio, perceberá que se voltam à preservação da agência dos jogadores em pelo menos um destes três pontos. A partir daqui, passaremos a referenciá-los diretamente.


No próximo ponto do manifesto, vamos abordar mais uma faceta de um bom desafio, que propõe situações complexas e decisões difíceis.

 


 

Comentários

  1. Demorei mas cheguei (Samuca aqui). Aproveitei a semana para ir lendo as publicações e de fato estão um primor. Muito do que eu aprendi começou com os podcasts do café e depois com a mesa aberta de archaia e a arena combat fu do grande João. Parabéns pelo conteúdo - mais uma vez - fino demais! Um abraço ♥

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