Descrevendo o que é um bom desafio, segundo Oil Fantasy, chegamos agora a um ponto relacionado com as dificuldades do desafio e como imprimí-lo em jogo. O objetivo aqui é fazer os jogadores queimarem a mufa fortemente. Vamos ver como funciona isso?
Até agora, as idéias que apresentamos em torno de um bom desafio se relacionam com fundamentos que desenharam e delimitaram a atuação do mestre, no sentido de dar espaço para a criatividade dos jogadores, respeitar sua agência e dar elementos para seu exercício.
Neste ponto, porém, vamos abordar o mestre quando ele pode moder, ou melhor, deve! E como a mordida pode doer mais. Com a agência dos jogadores respeitada e promovida, o mestre deve dar o seu pior ao propor e conduzir o desafio.
Abaixo, algumas maneiras de criar mais profundidade para os desafios.
Situações complexas
Quando o contexto do desafio é simples demais, ou quando suas opções são muito poucas e até óbvias, os jogadores não precisam considerar muitas coisas para tomarem suas decisões. Conforme as situações ficam mais complexas e mais coisas entram em jogo, há mais elementos para serem levados em conta na gestão de riscos e em como engajam com os problemas.
1. Desenhe as estruturas físicas do ambiente a favor do desafio
Esta não é uma questão de verossimilhança ao criar um ambiente, nem estamos falando do playground, como já abordamos anteriormente, mas sim de entender as estruturas físicas dos locais onde o desafio se desenrola e, observando com curiosidade a realidade ficcional, moldá-los para apimentarem o desafio.
Construa o ambiente pensando no desafio e monte suas estruturas físicas de forma a torná-lo mais complexo.
Um combate com um Beholder dentro de uma dungeon labiríntica pode ser interessante, mas se você parar para pensar, se ela foi construída para este monstro ou ele pode moldá-la em algum momento, pense nas características e capacidades dele e aproveite essas possibilidades para o desafio.
Ele flutua, não é? A dungeon pode ser um imenso cubo rubik com todas as peças interconectadas por passagens que exploram de forma interessantíssima a tridimensionalidade, que o Beholder tem facilidade em lidar mas que pode ser extremamente complicada para os jogadores.
2. Trabalhe narrativas a favor do desafio
O estilo Oil Fantasy não ter foco em construção narrativa não significa que narrativas não serão desenvolvidas. Da mesma forma que os jogadores criam narrativas para seus personagens espontaneamente conforme jogam, o mestre também cria narrativas para os NPCs e para o mundo de aventuras conforme propõe o desafio.
Pense em como uma conjuntura histórica ou a história de um local, de um monstro ou NPCs pode trazer mais complexidade à situação.
O
tesouro que o grupo achou tem moedas de ouro cunhadas com a efígie do
imperador mais sanguionolento do mundo? Quão perigoso é andar com isso
por aí? Um mero mural na parede que conta uma história nefasta pode
acrescentar muito drama a uma exploração.
Lembre-se, porém: a narrativa é emergente. Se os jogadores, por exemplo, não explorarem um sítio arqueológico inteiro, a história ali presente pode ficar fragmentada, incompleta e tudo bem. Deixemos que a informação seja coletada de forma ativa pelos jogadores, no contexto do desafio, em vez de despejar uma tonelada de informações direto sobre suas cabeças. Pegando emprestado uma técnica de roteiro, show, don't tell (mostre em vez de contar).
3. Interesses cruzados
O Maldito Zenaldo é um Troll que nasceu de um caldeirão de ódio e guarda a única relíquia mágica que poderia salvar a população de Zakki-Cola da tirania de uma megacorp com sede de sangue. Se uma relíquia idêntica pudesse ser encontrada na esquina, não teria aventura, mas como não tem, você sabe: hora de pensar em como convencer/comprar/surrupiar/roubar/espoliar do monstro tal item. Legal, temos um conflito, mas podemos apimentar mais isso aí!
Quando
há algo em jogo que é disputado por interesses cruzados, o desafio fica
mais complexo e isso naturalmente gera uma situação mais interessante e
com mais fatores a serem levados em conta pelos jogadores na resolução
do desafio.
Que tal se a relíquia é algo desejado pela população de Zakki-Cola, mas também é vigiada por uma seita que acredita que, caso seus poderes sejam usados, um demônio será liberado. Além disso, a própria megacorp vem rastreando o temido item e, sob o pretexto de proteção de patrimônio histórico, quer trancafiá-lo em um museu bem seguro, para que ninguém mais tenha acesso a seu poder.
4. Perigos ocultos
Imagine que o grupo se planeja para invadir a torre de um poderoso mago para subtrair um crânio de crital vaiolíssimo chamado Caveira Histérica. O plano é feito: uma missão furtiva, mapa do local pesquisado, rotina do mago repassada para entender o melhor horário para a invasão... mas ninguém contava que, uma vez roubada, o crânio de cristal começaria a gritar, fazendo um barulho ensurdecedor.
Uma maneira relativamente simples de virar de ponta cabeça os planos
do grupo, tirando os jogadores da zona de conforto e do esperado:
perigos ocultos, que não são conhecidos de antemão e que possivelmente os surpreenderão, exigindo uma dose extra de improviso na situação.
Claro que se os jogadores investigarem antes, pesquisarem sobre lendas e propriedades do crânio de cristal, esse perigo oculto deverá ser descoberto, pois sonegar tal informação justa seria quebra de agência e descobrí-la pode já ser considerada uma etapa saborosa do processo de superação do desafio.
Não é necessário que o mestre se preocupe em fazer tal informação ser muito difícil de ser obtida. Pelo contrário, ele pode até de alguma forma insinuar a possibilidade desse problema oculto que os jogadores podem simplesmente não se atentarem ou, caso se liguem, perceberão um aumento na complexidade do desafio.
5. Tempo limitado
Desafios podem encontrar limitações de tempopor motivos ficcionais ou por motivos de metajogo.
Um exemplo de tempo limitado por motivo ficcional é uma dungeon que ficará apenas 3 horas, de uma noite especial, sobre o nível do mar, submergindo assim que o prazo se cumprir. Isso cria uma janela de tempo bem limitada para o grupo fazer a exploração, tendo que evitar maiores complicações lá dentro para não se atrasar no retorno.
Por outro lado, um exemplo de tempo limitado por motivo de metajogo é como acontece em nossa campanha aberta, estilo hexcrawl, de Caves & Hexes, no qual os jogadores que saem para explorar os ermos têm até o fim da sessão para voltarem para a vila inicial, caso contrário devem rolar a chance de perderem seus personagens ou voltarem com alguma consequência bem pesada.
Uma boa solução é unir as duas coisas e, por motivos de metajogo, criar uma razão ficcional que explique o tempo limitado, ainda que não seja necessário.
O tempo limitado é o tipo de coisa que pode impactar bastante um desafio
e torná-lo complexo de muitas maneiras é estabelecer uma janela cronológica para que seja resolvido. É incrível como a pressa pode tornar tudo, de repente, mais caótico e tenso, seja pelo timer de toda uma aventura, seja pelo timer de situações específicas.
Para que isto dê certo, é vital que o mestre seja transparente e adote uma postura descritiva minimalista, como veremos mais à frente neste Manifesto, e permita que o grupo faça de forma mais ativa a gestão do ritmo de jogo e que o mestre fique atento à medição do tempo. Timers e recursos práticos, como um D30 marcando o número de turnos restantes, ajuda bastante.
Outra forma interessante é gerar pressão a partir do fator cronológico. Explorar uma dungeon vazia até a sala onde está o lich é uma coisa, mas a situação fica bem mais complexa se ela é habitada, por exemplo, por criaturas mortas, controladas por ele, que significam uma chance de 2:6 de encontro aleatório a cada 5 turnos.
Um outro exemplo legal: o grupo resolve invadir um galpão abandonado, que é utilizado de morada por um lobisomem. É sabido que ele sai para caçadas à noite, mas pode não demorar muito. O grupo então invade e o mestre arbitra que a chance do monstro estar presente era de 3:6, mas que a cada hora, caso ele não estivesse, a chance aumentaria em 1:6.
6. Recursos contados
Uma maneira interessante de aumentar a complexidade de um desafio é mexendo com a disponibilidade de recursos básicos para o grupo, tanto aqueles que são essenciais como água e comida, quanto aqueles que são utilidades importantes, como munição, dinheiro e tochas.
Claro que os jogadores gostam de preservar tais itens e é sempre importante que o mestre possa colocá-los em jogo, frente um risco, mas isso pode ficar ainda melhor!
É possivel construir o desafio criando condições que atrapalhem e tornem mais crítica a gestão de recursos. Por exemplo: rios pestilentos que não fornecem água potável, um cenário apocalíptico onde comida é bem escassa, uma dungeon com correntes de ar que ameaçam a durabilidade das tochas, uma travessia com sol de rachar, pedindo o dobro do consumo de água, etc. Até mesmo pontos de vida podem ser considerados recursos, se pararmos para pensar.
Uma vila que recebe aventureiros pode ser extremamente sensível aos tesouros resgatados e os preços podem aumentar muito, observando a riqueza dos personagens, tornando a gestão da grana muito mais complicada.
Quando o mestre coloca em jogo a comida, munição, água, etc, frente a um risco assumido pelos jogadores, se houver um ambiente que dificulta a gestão de recursos e o torna mais tenso, o problema vai certamente escalar em tensão e significado.
Uma leitura interessante a este respeito está no Quick Primer for Old School Gaming, um manual de estilo que é a maior influência para o Oil Fantasy, do Matt Finch, quando versa sobre A Caravana Donner. Você pode ler este material traduzido e comentado aqui!
7. Algo em jogo
Se há algo em jogo em terminada situação, o mestre pode criar o desafio de forma a colocar isto na alça de mira e aproveitar este fator.
Digamos que o grupo está fazendo uma escolta e deve garantir que um NPC chegue em segurança em determinado local. Esta é uma excelente oportunidade do mestre colocar em perigo esse personagem e propor o desafio de forma que sua presença e a missão tornem tudo mais complexo.
Leve em conta o que está em jogo no momento para potencializar situações tensas e
complicadas que podem surgir de uma ameaça ao que se deve proteger, ou
construir, ou preservar.
Mais uma vez, como diria Matt Finch em seu Quick Primer, com o Caminho do Vaso Chinês, se há algo em jogo naquela situação, seria de uma irresponsabilidade descarada não colocar tal coisa na reta. Caso haja um valioso vaso Ming em um ambiente onde estoura uma porradaria, sua presença é uma incrível oportunidade de apimentar o desafio.
Decisões Difíceis
A idéia de decisões difíceis é bastante trabalhada no Apocalypse World, Burning Wheel e seus derivados. Não que a idéia de colocar os jogadores com uma escolha complicada de fazer não tenha aparecido em D&D, principalmente em seus módulos, mas nesta geração de jogos encontrou maior expressão, até mecânica.
Isso encontra os jogos Old School em um outro manual de estilo, chamado Principia Apocrypha, que fala sobre Escolhas Difíceis, mas vamos expandir.
Inicialmente, podemos colocar que, na composição do desafio, colocar os jogadores frente a decisões difíceis é mexer com o básico do sentimento de risco e recompensa, que o jogador pesa ao escolher seu caminho.
Um ídolo de ouro que está do outro lado de um abismo complicado de ser superado e bastante instável pode colocar o jogador frente a uma escolha: vale arriscar a vida do personagem, ou os itens que carrega, em troca da chance de conseguir pegar esse tesouro?
Mas podemos ir além ao inserir a possibilidade de escolhas difíceis.
1. Colocando em risco algo que os jogadores dão valor
Digamos que o citado ídolo de ouro não representará apenas XP para os jogadores passarem de nível, mas imagine que nas lendas, é dito que dentro dele há uma fórmula mágica capaz de curar licantropia, que não por acaso é o mal que aflige o NPC mais querido da campanha.
Por mais que o desenvolvimento de personagens em relação a esse tipo de coisa não seja o foco do Oil Fantasy, a agenda narrativista também se desenvolve, espontaneamente, e é incrível do que jogadores são capazes quando sentem apreço por um personagem, ou localidade e até por determinado item, independente da perspectiva de ganho e preservação de poder
E mesmo que jogadores possam ser frios e calculistas, ou que ainda não tenham desenvolvido afetos em uma one shot, por exemplo, há certas perdas de NPCs, locais e itens que podem configurar, no mínimo uma quebra de um cenário estável e conhecido e isso às vezes é o suficiente para isto apimente um desafio. Afinal, aquele vendedor de armas que já estava amaciado, fazendo vários descontos para o grupo, pode ser substituído por seu parente sovina, mal humorado e ganancioso.
É importante, portanto, ficar atento ao que os jogadores valorizam, durante o jogo.
2. Dilemas
Imagine que o grupo planeja emboscar um grupo de mercenários capitaneado por uma mulher chamada Tileca que, é sabido, voltou dos ermos com um tesouro considerável. Antes de partir da cidade, porém, um fato novo ocorre: junto a seu bando, se junta sua pequena filha, de 8 anos. Para piorar, o pessoal descobre que o dinheiro de Tileca servirá para comprar sua liberdade e a da menina.
Será que o grupo prosseguirá à sanguinária emboscada? Será que emboscará da mesma forma? Será que admitirá colocar a menina em risco? E uma vez com o dinheiro em mãos, caso tudo der certo, deixará mãe e filha sem a liberdade?
Aproveitar dilemas morais é muito interessante porque pode criar discordâncias internas no grupo, pode significar uma reviravolta imensa nos planos e permitir aos jogadores tomarem decisões surpreendentes, criando autoconhecimento sobre o personagem com que jogam.
O blog Pontos de Experiência tem um post excelente, falando sobre O Dilema do Prisioneiro, em que aborda dilemas interessantes.
No próximo post falaremos de como a construção de um bom desafio guarda a verossimilhança do mundo de aventuras.
O podcast anexado não está sendo executado nem no Podbean. Tem outro elo para a auscuta?
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