Manifesto Oil Fantasy #12: Ferramental como estrutura para o desafio

O Escritório do Advogado por Reymerswaele

A gente viu como o mundo de aventuras pode gerar uma estrutura que ajuda o mestre a propor e conduzir seus desafios, através da construção de sua verossimilhança, exemplificado pelo Naturalismo Gygaxiano expresso no D&D clássico. Agora é hora de ver uma outra estrutura que ajuda a informar um bom desafio: as ferramentas do jogo. Vamos lá?

 

Ruídos na percepção do mundo de aventuras

Um problema que mestres podem encontrar ao propor ou conduzir um desafio é não entender como ancorá-lo na realidade ficcional nos pormenores dos obstáculos e impasses. Como consequência, os jogadores não conseguem se informar o suficiente para tomarem decisões conscientes e acabam sentindo perda de agência.

Para exemplificar o problema: imagine que um jogador se depara com uma fenda imensa no chão entre seu personagem e o ídolo de ouro que quer resgatar.

Mestre: É um buraco grande, muito difícil de ser pulado, com uns 4 metros entre as bordas da fenda.

Jogador: Ok, vou pular! 

Mestre: Beleza, rola o d6.

- Jogador rola 1d6 e tira 4

Mestre: Você caiu!

Jogador: Injusto! Da outra vez que fui pular um buraco difícil, tirei 4 e foi o suficiente!

Vemos aqui um problema referente a parametrização. O mestre não deu parâmetros claros para o jogador tomar decisões informadas, tendo sua agência prejudicada. Falar que o buraco é grande, que é difícil de pular, e seu tamanho em metros são informações relevantes, claro, mas faltou algum tipo de ancoragem que torne mais objetivo a dificuldade da superação do risco.

Como fazer isto? Parametrizando com as ferramentas que o sistema traz!

 

Ferramentas e parâmetros

Digamos que, perante o impasse na ficção - será que o personagem consegue pular o buraco? - um sistema de jogo X tenha uma ferramenta que o mestre acha apropriada, algo chamado "dado de risco". É um d100 sobre o qual é arbitrada uma chance de sucesso e de falha.

 Mestre: A cada 2 mestros de buraco, então, há uma chance de 40% de falha no salto, o que acha?

Jogador: Por mim ok! Como você disse que a distância era de 4 metros, então seriam 80% de falha no salto, ou 20% de sucesso, é isso?

Mestre: perfeito! Isso mesmo, vamos rolar os dados?

Jogador: Calma... vim barganhar. Se eu rolar de 01 a 60 no d100, meu personagem cai para a morte, mas se eu tirar de 61 a 80, o salto é feito com sucesso mas meu personagem perde sua mochila, com todos os itens junto, que caem no abismo, pode ser?

Mestre: Combinado. Pode rolar!

Esta noção da resolução mecânica do risco, parametrizando de forma objetiva as chances de sucesso e falha, dá muito mais informações para os jogadores tomarem suas decisões e até participarem da resolução mecânica do impasse da ficção, além de ajudar a se entender melhor o impacto das ações no mundo de aventuras.

Há quem pense que trazer esse tipo de informação ou que as regras do jogo seriam uma espécie de informação de metajogo nociva à imersão e realismo. O movimento Free Kriegspiel Revolution defende um abandono da maioria das regras para que haja um engrandecimento do realismo à mesa, mas não vemos desta forma, pelo contrário.

Em um filme no cinema, de fato, se alguém resolve interromper a sessão rapidamente para trocar os rolos de filme que estavam dando problema, de fato  há uma quebra na imersão, mas quando se trata de jogos, acreditamos que o que cria imersão é a interatividade e agência do jogador, e a percepção de seu progresso em aprender a superar os desafios, como expresso na Teoria do Fluxo, de Mihaly Csikszentmihalyi.

Os parâmetros do sistema, expressos em suas regras e estatísticas, ajudam a informar riscos com mais precisão, reforçando a verossimilhança do mundo de aventuras. Assim, os jogadores podem tomar decisões informadas de forma mais consciente e medir melhor seu impacto, reforçando sua agência e, por consequência, a imersão.

Utilizar de forma sólida as ferramentas do sistema ajuda a medir melhor os riscos que os jogadores assumirão ou não, e suas consequências. Não seria exagerado, portanto, afirmar que, em termos de jogo, faz mais diferença dizer que há 5 chances em 6 de se pular sobre uma imensa fenda no chão do que dizer que ela tem 4 ou 5 metros de vão, ainda que não seja também uma informação irrelevante para a visualização do problema e para gerar consistência.

Consistência

Quanto mais utilizamos as ferramentas de um sistema de jogo dentro de uma mesma lógica, com os mesmos tipos de decisões, usando os parâmetros da mesma forma, reforçamos a verossimilhança do mundo de aventuras. Isso ajuda não somente na arbitragem e condução do desafio, mas também em sua construção, por parte do mestre.

Ao projetar uma dungeon, é de grande valia parametrizar os obstáculos e riscos previamente, não só para estabelecer melhor a situação proposta e poder improvisar em cima, se necessário, evoluindo os parâmetros conforme a ficção avança, mas também para usar tais parâmetros de forma natural na descrição assim que for necessário, ajudando o tempo que o grupo leva para arbitrar um impasse.

Pense em quantas rodadas um personagem demora para percorrer o espaço de um corredor. Na dificuldade de se arrombar uma porta específica, especialmente emperrada ou no quão forte o personagem deve ser para conseguir abrí-la de boa. Considere o quanto de dano alguém poderia tomar ao ser soterrado em um desabamento iminente, numa porção antiga de um local. Em qual a chance do vigia estar no banheiro quando o grupo for invadir um galpão na calada da noite. 

Com base nisso, você pode pensar em certas situações interessantes e transmití-las de forma mais simples enquanto o jogo acontece, criando uma estrutura que ao mesmo tempo define e proporciona evoluções de um bom desafio.

Exploração de Ermos em Biergotten

Um exemplo bom de uma estrutura de desafio baseada em regras é a viagem pelos ermos em Biergotten, nossa campanha de hexcrawl.

Quando os personagens viajam pelos ermos, eles sabem que, dentre diversos riscos ambientais, há alguns que são bem claros: o risco de eventos durante a exploração, pois podem ser bem perigosos e a possibilidade de se demorarem na viagem e não conseguirem voltar para a cidade a tempo (antes do fim da sessão).

A chance de eventos aleatório nos ermos é determinada de acordo com o ritmo de viagem, com rolagem engatilhada a cada 6 milhas (1 hexágono no mapa controlado pelo mestre). O ritmo de viagem, por sua vez, é influenciado pelo peso que os personagens carregam, as condições climáticas, as características do terreno que cruzam e outras condições. Tudo parametrizado no funcionamento da tabela de ritmo de viagem.

Os jogadores sabem que quanto mais longe forem, mais engatilharão rolagens de encontro aleatório, e que quanto mais lentos estiverem, maiores as chances de ocorrerem a cada rolagem que fizerem. 

Quanto mais encontros aleatórios, maior a chance do tempo de jogo ser consumido em interações outras que não de jornada, aumentando a possibilidade do grupo não conseguir voltar a tempo antes do fim da sessão.

Isso cria uma estrutura básica para um desafio de exploração dos ermos e que comporta a emergência de muitos problemas interessantes e demanda dos jogadores uma postura muito ativa ao medirem risco e recompensa, gerando grande imersão.

Leia mais sobre Biergotten e sobre as regras de exploração do Caves & Hexes, o sistema utilizado.


 [...]

Assim encerramos nossa sequência de posts sobre um bom desafio, segundo Oil Fantasy e, em seguida, iniciaremos um papo sobre a postura do mestre de Oil Fantasy.

 

 

 

 


Comentários

  1. Uma das coisas que senti falta no texto é que a ancoragem gigaxiana sempre era atrelada a mecânicas de redução dos riscos em função do uso dos recursos do grupo e manipulações do ambiente. Por exemplo, utilizar óleo para iluminar um corredor, gastando recursos do grupo mas melhorando a visibilidade para armadilhas. Assim, o jogador tem que tomar decisões sobre quando é importante reduzir os riscos, sabendo que isso tem sempre tem um preço em recursos.

    Outros exemplos clássicos são gastar o recurso tempo e madeira de uma porta çara fazer uma barreira de lanças para dificultar a passagem de monstros por um corredor, ou prender portas com objetos do grupo.

    A dungeon sempre era jogada contra o tempo e recursos disponíveis. Assim cada decisão implicava em ganhos e perdas não apenas na ação presente, mas para o futuro. A pergunta era "quanto vale reduzir os riscos agora, em detrimento das eventualidades guturas, já que os recursos são escarços?".

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  2. Opa, gostei do nome. =D

    Essas coisas foram abordadas neste post anterior, ainda na sequência sobre o que seria um bom desafio: https://oilfantasy.blogspot.com/2023/04/manifesto-oil-fantasy-11-situacoes.html

    De todo jeito, isso será retomado com mais profundidade quando falarmos sobre arbitragem de risco e consequências, mais pra frente. Aí abordaremos com mais ênfase a gestão de riscos, inclusive na postura dos jogadores, e como isso gera controle narrativo no jogo.

    Valeu demais pelo comentário, mto pertinente =)

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