Um ponto importante de levantarmos agora é que os desafios não ocorrem normalmente em condições isoladas, em uma dimensão à parte. Pelo contrário, eles ocorrem no contexto de um mundo de aventuras, que lhes dotarão de consistência e estrutura. Vamos entender as relações entre o cenário e os obstáculos e problemas que os jogadores enfrentarão?
O jogo ocorre em um mundo de aventuras coerente e vivo
Podemos começar com um exemplo: imagine que o grupo de aventureiros conhece bem uma determinada região e conhece como são os terrenos, a fauna, flora, os monstros com que podem esbarrar. Já zanzaram por lá em outras aventuras.
Por terem uma espécie de aliança com os homens-chacal da planície, preferem seguir por lá e tentar seguir com algum tipo de escolta pelo brejo dos homem-sapo, que deles morrem de medo por serem seus predadores e por terem um longo histórico de conflitos perdidos.
Eis que conseguem a escolta mas, ao chegarem no brejo, são entregues pela escolta aos anfíbios. Aparentemente, do nada, eles têm agora uma sólida aliança, que passou por cima de uma desavança ancestral e de uma cadeia alimentar particular conhecida.
O grupo se lembra que os homens-sapo têm imensa repulsa a pó de giz e então resolve fugir, lançando nos ares todo o conteúdo de um saco cheio deste material. Mais uma vez, do nada, parece que superaram tal fraqueza, pois nem houve chance de fugirem ou se atrapalharem com aquela nuvem branca pairando no ar.
Ressalvado o insólito, como um demônio ter talhado a aliança entre as duas espécies de monstros, ou os homens peixes terem feito uma seleção de um esquadrão especial que, diferente de todo o resto da população, não tem alergia a pó de giz, os jogadores sentiram que o que aprenderam sobre o mundo não lhes ajudou a tomarem boas decisões. Pelo contrário.
Podemos dizer que, de certa forma, a agência dos jogadores foi prejudicada pela impossibilidade de tomarem decisões informadas a respeito do melhor trajeto, com base no que já descobriram sobre o mundo, sobre a região e seus habitantes.
Um bom desafio encontra respaldo na coerência interna do mundo de aventura, e isso cria um alicerce sólido, comum, sobre o qual o mestre vai propor problemas que os jogadores tentarão resolver. Este espaço imaginário simulado e compartilhado servirá de base lógica para que o diálogo criativo aconteça, fazendo o jogo acontecer.
Para entender isto melhor, podemos tomar emprestado um termo da arte chamado Verossimilhança.
Verossimilhança
A geração Forge (do forum The Forge) e muitos game designers atuais utilizam bastante o termo "diegese" ao se referirem a este mundo ficcional, internamente coerente e
lógico em termos de história, e isto vem a reboque de estudos de
narratologia que muito inflienciaram o game design de videogame. Essa
concepção defende que toda arte comporta uma dimensão narrativa e
englobaria também a própria mimese e assim jogos, também como expressão artística, também tem sua dimensão narrativa.
Aqui, vamos nos ater às diferenças entre mimese e diegese propostas no pensamento aristotélico, nos aproximando da primeira e nos afastando da última, porque parece mais apropriado a Oil Fantasy, um jogo focado na construção de um desafio, para o qual a dimensão narrativa é mero reflexo, que não pauta de forma marcante a atividade dos participantes.
Falaremos, portanto, em espaço mimético e não em espaço diegético, como se
usa modernamente. Deixemos isto para os storygames, focados em construção de histórias, com intencionalidade.
Aristóteles, na Poética, propõe que a mimese artística, ou seja, a reprodução do real na arte, ocorre no campo do possível e não do real, ou seja, é mais importante que uma obra manifeste coerência interna do que tenha congruência com a nossa realidade. Verossimilhança é esta capacidade de uma obra se fazer crível dentro de sua estrutura lógica, independente do realismo da ficção, e é fundamental para a supressão da descrença da história.
Deve preferir-se o impossível verossímil ao possível inverossímil
- Aristóteles
Adaptando
Um bom desafio de Oil Fantasy está bem ambientado por um mundo de aventuras bem estruturado, que permita a emergência de bons conflitos, que se desenvolvam de maneira lógica e coerente para todos os participantes, tanto mestre quanto jogadores.
Naturalismo Gygaxiano
Notem que muito mais relevantes que as estatísticas dos monstros, as descrições de suas fisiologias, habitat e outros detalhes de como ocupam, se comportam e sobrevivem no mundo acabam dando muito mais informações e parâmetros para fazer com que um desafio que os inclua como obstáculo esteja contextualizado em um mundo autônomo, coerente e que tem um funcionamento que pode ser investigado para proveito dos jogadores.
Como diz Maliszewski, a consequência do naturalismo Gygaxiano é que ela estabelece o D&D como uma pseudo-realidade, uma simulação que podemos chamar de espaço mimético ou, como usamos em Oil Fantasy, o mundo de aventuras - este caldo feito das imaginações dos participantes do jogo em confluência e isto constrói uma importante verossimilhança que deve informar a construção do desafio em larga escala.
O mundo de aventuras é persistente e autônomo, e não existe apenas em resposta à presença dos personagens dos jogadores e sua consciência. Por isso, não há como esperar que o desafio seja de qualquer maneira nivelado de acordo com os poderes dos personagens dos jogadores.
Podemos ver isso concretizado também em tabelas de encontros aleatórios por ambiente, com uma lista de possíveis criaturas que podem ser encontradas em determinado tipo de região. Ainda que inicialmente tais tabelas possam parecer genéricas, conforme são utilizadas começam a concretizar o mundo de aventuras a partir de uma estrutura coerente, de forma que ele vai sendo formado à medida que é explorado, mas feito de forma sólida.
A bem dizer, não somente criaturas e encontros aleatórios, mas há uma tradição de tabelas organizando e propondo toda sorte de elementos para o mundo de aventuras, como tipos de assentamentos, ruínas, etc. É uma maneira de estruturar um cenário para o jogo mas permitir que se construa de forma orgânica, conforme o jogo acontece.
Material como esse é farto tanto nos livros clássicos da TSR quanto no material paralelo da Judges' Guild e outros produtos da mesma verve, mas conforme os jogos foram se voltando para o objetivo de contar histórias, em vez de constituir e superar desafios, encontros aleatórios e este tipo de dinâmica de jogo foi sendo deixado de lado para um foco maior em plots, linhas e arcos de história e idealização da narrativa, com menos espaço para aleatoriedades que possam ser desconfortáveis ao enredo.
Desequilíbrio natural
Dentro do estilo Oil Fantasy, isto fundamenta a aplicação do Quarto Momento Zen do Quick Primer for Old School Gaming, do Finch: Esqueça o Equilíbrio de jogo.
Segundo ele "As campanhas estilo Old School são jogadas no mundo de fantasia, com todos os seus perigos, contradições e surpresas: não é um "cenário de jogo" pronto, que de alguma forma já apresenta desafios na dificuldade exata para o nível de experiência e de poderes do grupo.
Como resultado, pode ser que o mesmo grupo de aventureiros, andando pelo mesmo ambiente - digamos, As Montanhas de Fogo - encontrem apenas a fauna local e até mesmo alguma caça, mas se fizerem parte daquele mesmo ambiente, pode ser que se deparem com os mal-humorados Kobolds de Sucker e até mesmo o maldito Dragão Robson, que faz pessoas evaporarem com sua baforada.
Isso eleva o desafio. Ninguém garante que todo encontro deve ser resolvido na força bruta e na disputa de poder. Fugir é sempre uma opção, ou negociar, quem sabe. O que importa é que os jogadores utilizarão de seus recursos, dos elementos do ambiente, da própria lógica e coerência interna do mundo de aventuras, e de criatividade para tentar superá-lo, sempre medindo o risco de suas decisões.
Em decorrência disso, podemos dizer que, assim como histórias se desenrolam a partir de um jogo Oil Fantasy, ainda que ele seja focado em proposição e superação de desafios, o mesmo ocorre com desenvolvimento de mundos. Acontece um worldbuilding orgânico conforme o mundo de aventuras é construído como base para os desafios.
Seguindo o material do D&D clássico, temos um exemplo de como este tipo de informação que um jogo traz pode ajudar a criar desafios interessantes e, por reflexo, desenvolver construção de um mundo de aventuras verossímil e repleto de narrativas possíveis.
Um exemplo deste tipo de dinâmica pode ser visto neste vídeo.
Veja também:
Reflexões de Oil Fantasy #4: Equilíbrio de Jogo, por Chico Siqueira.
Naturalismo Gygaxiano, por Quiral Alquimista
No próximo post, fechamos nossa sequência de esceitos sobre um bom desafio, segundo Oil Fantasy, falando do uso do sistema de jogo, seus parâmetros e estruturas na composição de um bom problema para os jogadores.
Comentários
Postar um comentário