Manifesto Oil Fantasy #15: Criação do Mundo de Aventuras

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Dizem que o D&D clássico não é focado nas histórias dos jogadores, mas na criação do mundo que os abriga. Eu não sei se isso é inteiramente verdade, principalmente se analisarmos que o worldbuilding e suas técnicas será tão diverso quanto as mesas que existirem, de forma geral.

Neste post, vamos ver a resposta que Oil Fantasy pode dar a respeito do assunto: como acontece a construção do mundo de aventuras, e qual sua função?


Verossimilhança

Certa vez aqui no blog pude abordar que o paradigma de ficção que trabalhamos em jogos de Oil Fantasy não é diegético. Exploramos uma experiência mimética a partir de um mundo de aventuras que cumpre a função vital de gerar a verossimilhança que lhe dê base, em vez da estrutura diegética para a criação de uma história a ser contada.

Gerar essa verossimilhança é a função principal da construção do mundoe, da mesma forma que narrativas podem ser criadas para enriquecerem um desafio a ser proposto pelo mestre, a construção do mundo de aventuras funciona também neste sentido. 



Worldbuilding Ferramental

Para começarmos uma aventura de D&D clássico, a partir do tradicional tropo do forte nas terras marginais, precisamos criar alguns elementos fundamentais do mundo que sirvam de suporte ao desafio proposto, que é explorar os ermos, em torno do ponto mais avançado de civilização conhecido, em busca de riquezas de uma civilização perdida, enfrentando perigos do ambiente selvagem e dos monstros que os habitam e ameaçam os assentamentos humanos.

Pensando em gerar problema e conflito para o jogo, o mestre pensa em alguns pontos deste mundo de forma funcional, ou seja, é uma agenda acessória e ferramental à construção do desafio:

Como é esta última ocupação humana antes dos ermos?

É um forte? Uma cidadela? Um navio que singra mares desconhecidos? Uma taverna com um portal para lugares estranhos? Quem vive lá? Qual a cultura e a organização do local? Quem são as pessoas mais poderosas do local? Quem os obedece? Como funciona a economia local? Como tiram seu sustento? Etc.


Como é o ambiente em torno desta ocupação?

Como é a vegetação? A geografia? A fauna e a flora? O clima? Etc.


Quais são os maiores desafios e perigos desta região?

Que monstros vivem ali? Como vivem? Qual seu território de cala? Que animais perigosos estão neste ambiente? Quais obstáculos e riscos trazem a geografia, o clima e a flora local? Etc.


Quais são as recompensas que despertarão o interesse dos aventureiros?

Tesouros de outrora guardadas em ruínas habitadas por monstros? Flores especiais que podem trazer os mortos de volta à vida? Criaturas mágicas com conhecimentos perdidos? Conhecimentos que possam criar uma ligação com os deuses? Bibliotecas perdidas com conhecimentos arcanos? Etc.


Como isso tudo se liga ao desafio?

Como a ocupação humana se relaciona com os perigos dos ermos? Como os monstros afetam a vida nesta região? Há muitos aventureiros buscando as recompensas lá de fora? Como o povo trata esse pessoal? Quais pistas as criaturas mágicas deixariam de sua presença nas matas? Há herbalistas na vila que podem dar mais informações sobre os perigos da flora local? Os poderosos da ocupação desejam algo que pode ser trazido de volta? Podem oferecer recompensa? Ajuda? Etc.

Respondendo essas perguntas, você já tem uma estrutura suficiente para propor seu desafio aos jogadores, mas é apenas um exemplo. Há muitas situações possíveis, em maior ou menor escopo, de acordo com o desafio pensado.





Instruções de criação orientada ao desafio

Dentro de D&D clássico, há muitas formas de se criar um bom desafio. Uma das mais conhecidas são as instruções de Gary Gygax  e outros autores para se criar masmorras, que costumam ser ambientes arquitetados especialmente para atrair e desafiar aventureiros.


Dungeons & Dragons Basic (Moldvay - 1981)

Um bom exemplo está no D&D Basic que, em sua parte 8 (B51), traz um passo a passo para criar uma masmorra, envolvendo:


1. Criar um cenário (um argumento ou situação de conflito) com base em uma tabela
2. Decidir por um ambiente de aventura
3. Decidir monstros especiais a serem usados (sorteados da tabela de Monstros Errantes)
4. Desenhar o mapa da dungeon
5. Abastecer a dungeon de tesouros, armadilhas, monstros e outros elementos
6. Criar detalhes









Gygax75 Challenge



Outro bom exemplo é o material do Gygax75 Challenge, organizado por Ray Otus a partir de artigos do próprio Gary Gygax relativos à construção de mundo voltado ao desafio, como traduzido pelo blog Dados & Canecas, que recomenda o seguinte procedimento:



1. Criação de um conceito
2. Criação dos Ermos
3. Criação de uma masmorra
4. Criação de um vilarejo
5. Criação do ambiente de campanha


A idéia é que isso seja o pontapé inicial de uma campanha de jogo a partir de um desafio pontual. 


Outros livros de D&D, como o Rules Cyclopedia (edição de transição para o D&D moderno) traz um kit de campanha muito extenso, como demonstrado no vídeo abaixo, que permite através de sua estrutura a construção do mundo de aventuras de forma orientada ao desafio.




Isso tudo confere, como defendemos anteriormente, verossimilhança à mimesis que ocorre em um jogo de Dungeons & Dragons, reconhecido como Naturalismo Gygaxiano.



Gerando Estrutura

Como podemos ver, é comum que no worldbuilding típico do naturalismo gygaxiano que monstros errantes sejam colocados em tabelas para sorteio caso ocorra um encontro aleatório, da mesma forma que alguns conflitos, tesouros e outros elementos.

Pensamos que o mestre tem total autonomia para tomar decisões arbitrárias quando está construindo e executando desafios ao grupo de jogadores, mas quando organiza os elementos de cenário em tabelas e segue sorteios aleatórios, ele cria um mundo responsivo e orgânico, que se desdobra facilmente em vários desafios e reforça verossimilhança com consistência de resultados.

Quando uma tabela de tesouros de uma dungeon só torna possível o sorteio de gemas e jóias, isso descreve uma masmorra que por algum motivo não tinha moedas e outros tipos de tesouro. Isso gera uma verossimilhança, pinta uma ficção, traz uma narrativa.

Será que eram galerias tomadas por especialistas em corte de gemas e joalheria? Será que era um lar de ladrões de outrora, que levavam apenas tesouros mais leves e ágeis de serem carregados? Ou será que há alguma espécie de criatura que teria corroído ou consumido apenas os metais das moedas, poupando as pedras?

Gerar esse tipo de estrutura ao mesmo tempo indica o tipo de desafios que podem ser encarados em determinado cenário, como também ajudam a gerá-los, em específico, de forma fácil, consistente e verossímil, agilizando o improviso do mestre caso não tenha preparado tudo de antemão.



Worldbuilding Espontâneo


Se o que o mestre pensou é uma taverna com uma portinhola que leva a imensas masmorras subterrâneas repleta de monstros, onde restam os últimos barris do vinho mais delicioso já feito pela humanidade, ele não precisa se preocupar com todo o mundo à volta; para começar já basta entender a taverna e suas masmorras. Caso necessite, pode criar depois, conforme os jogadores forem explorando.

Digamos que foram até as profundezas das masmorras, eliminaram um grupo de 10 diabretes encapetados que espreitavam em uma poça cheirando a enxofre, e trouxeram de volta 2 barris do precioso vinho. O que eles farão? 

Darão uma festa na taverna? Quem comemorará? Se pretendem vendê-los, quem frequenta a taverna que pode comprar? O próprio taverneiro talvez? Caso vendam e queiram comprar armaduras mais parrudas, há ferreiros lá fora? Como é a cidade fora da taverna? Como são os preços? Etc.

Porém, neste momento de expansão, é hora do mestre se perguntar: alguma destas coisas faz parte do desafio? 

Lembra nosso papo sobre as posturas do mestre de Oil Fantasy? Quando não estiver aplicando seu desafio, o mestre não tem porque exercer controle sobre a ficção. Isso quer dizer que, caso a construção do mundo não for orientada ao desafio, o mestre deve abrir mão de seus poderes e criar junto com os jogadores e isso quer dizer que eles mesmos podem responder as perguntas feitas acima, permitindo o worldbuilding de forma horizontal.


Exemplo de worldbuilding espontâneo


Vamos ver como isso entra em jogo? Imagine que os jogadores voltaram com os tonéis de raríssimo vinho do exemplo anterior. Em vez do mestre dizer o que os aguarda, ele pergunta aos jogadores.

- Mestre: Vocês voltam pela portinhola da taverna que leva ate a Dungeon. O que vocês gostariam que estivesse acontecendo neste momento?

- Jogador 1: A taverna estava cheia, é um feriado especial e os brutos bêbados tinham acabado de começar uma briga generalizada, mas assim que retornamos todos param e comemoram juntos, efusivamente!

- Mestre: Vocês querem vender o tonel? Abrir para comemorar com as pessoas? Qual vai ser?

- Jogador 2: Podemos abrir um deles e botar lenha na fogueira, pra fortalecer a comemoração, mas a outra a gente quer um comprador.

- Jogador 3: Pode ter inclusive mais de um comprador, e a gente começa a fazer um leilão!

- Mestre: Beleza, pessoal, deixa eu continuar daqui...

Neste momento, o mestre pensa que tem elementos pra traçar um desafio, então começa:

- Mestre: Haroldinho saca um diamante do tamanho de um punho do cu do boi empalhado que fica em cima do balcão da Taverna do Corno Manso - toda sua riqueza - e coloca pra jogo. Barão Teteu Lenhaverde, um famoso aristocrata explorador, coloca em cima da mesa uma saca cheia de moedas de ouro e acena. Pela porta da cisterna, vem um homem todo coberto por um manto roxo, escondendo sua face, dizendo que tem uma proposta que vocês não poderão recusar. 

E por aí vai...

Quando o mestre percebe que os jogadores trouxeram ao jogo elementos suficientes para que se imprima um novo desafio, ele retoma o controle ficcional do mundo e dos NPCs novamente e muda sua postura.

No próximo post do Manifesto Oil Fantasy vamos analisar de forma mais profunda como se dá essa construção criativa entre os participantes e a sintaxe com que isso ocorre, através de um fenômeno que chamaremos de reivindicação ficcional.






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