Manifesto Oil Fantasy #17: Reivindicação Ficcional



Para entender o que é verdade dentro da ficção do jogo, falamos no último post sobre A Lei da Mesa, segundo a qual somente o que é jogado se torna verdade no mundo de aventuras. Agora é hora de entender como isso acontece, segundo a ótica do estilo Oil Fantasy.


Reivindicação Ficcional

Todos os participantes criam o mundo de aventura juntos, organicamente, conforme descrevem os ambientes, seus personagens e suas ações, fazendo assim o que convencionamos chamar de reivindicações ficcionais

Quando alguém, no diálogo criativo, cria um fato na ficção, esta pessoa está reivindicando a criação daquela porção do mundo de aventuras, que passa a existir como verdade.



DM: A taverna começa a pegar fogo. Ainda não há labaredas, mas a tocha começa a incendiar tudo sobre o tampo da mesa. Você percebe quando um homem que estava ao fundo da taverna levanta e, com os olhos arregalados, grita FOOOGOOO! O que você faz?


O mestre quando descreve que há um homem no fundo da taverna gritando, está fazendo uma reivindicação ficcional. O mesmo ocorre quando ele fala que o fogo começa a alastrar no topo da mesa a partir da tocha. Isso tudo passa a existir no mundo de aventuras.


Postura dos Participantes e Reivindicação Ficcional


Se durante o desafio o mestre é quem prioritariamente faz reivindicações ficiconais relativas ao mundo de aventuras e NPCs, e os jogadores reivindicam a ficção relativa a seus personagens e sua interação com a fição, quando o desafio não está tracionando o jogo essa assimetria deve dar lugar a uma criação horizontal, difusa.

Como é uma mudança na postura dos participantes, neste momento em que o jogo não tiver um desafio que o tracione, eles devem ampliar este espaço colaborativo de criação; os jogadores devem se sentir mais livres para criar sobre o mundo e os NPCs, e o mestre pode sempre devolver perguntas feitas a ele, estimulando tal processo. Podemos dizer, portanto, que o mestre delega, de forma tácita, a reivindicação narrativa aos demais também no tangente ao mundo de aventuras e NPCs, e deve provocá-los para que atuem de forma mais ativa neste sentido.


Jogador: Eu corro até a tina cheia d’água do lado de fora da taverna, onde os cavalos ficam amarrados, carrego ela pra dentro e despejo a água na mesa, em cima do tampo flamejanete, pode ser?

DM:
Tudo bem, a tina está de fato cheia, mas ao se abaixar para pegar, percebe que está pesada demais. E agora?


Perceba que o mestre, em momento algum, disse que havia uma tina cheia d’água do lado de fora da taverna, onde ficam os cavalos. Como fazia sentido na verossimilhança e não ia de encontro a nada que tivesse definido na construção de um desafio, ele simplesmente dá seguimento ao diálogo criativo. Neste caso, ele delegou, de forma tácita, a reivindicação ficcional de fatos do mundo de aventuras - que idealmente são de seu controle.

O DM pode também delegar de forma expressa, chamando o jogador a determinar a ficção para além de seu personagem.


Jogador: Eu entro na taverna de novo, correndo e gritando, buscando alguém que queira me ajudar a trazer a tina cheia d’água. Alguém se prontifica?

DM: A taverna não está vazia e há bêbados de vários tipos. Alguns deles se oferecem, alguns por claro desespero, outros por susto. Conta aí pra gente quem que vai ajudar você! Como ele é? O que ele faz?


Aqui o mestre, a partir de uma indagação do jogador sobre o ambiente e NPCs, retorna a pergunta, delegando de forma expressa essa reivindicação ficcional.



Reivindicação fora de registro


É possível que o mestre reivindique ficcionalmente algo próprio dos personagens dos jogadores. Pode ser também que os jogadores reivindiquem ficcionalmente algo relativo ao mundo de aventuras e NPCs, mesmo durante um desafio, bastando seguir o diálogo para que os participantes, ainda que dentro da assimetria de seus papéis, concordem implicitamente com as novas verdades estabelecidas. 

Vamos ver como funciona.


Jogador: Meu personagem entorna o rum e pergunta ao taverneiro "de onde é esse rum, meu caro?".

DM: O taverneiro olha pra você, aponta pro osso de baleia unicórnio que ostenta na parede de seu estabelecimento e fala "da Ilha da Carranca", conhecidamente uma bebida valiosíssima. "Vai te custar 2 mangos!". Você, porém, tendo nascido em Porto do Barão, sabe que esse rum não vem de lá.

Jogador: Ilha da Carranca uma ova! Não pago 2 mangos nesse rum nem que a vaca tussa!

DM: O taverneiro faz sinal pro seu capanga, o famoso e violento Cu de Aço, que se levanta e não pensa duas vezes antes de sacar o porrete e vir pra cima de você.

Jogador: Vou pular para trás do balcão da taverna e tentar alcançar o osso da baleia unicórnio na parede, pra me proteger.

DM: Vamos ver se você consegue pular pra trás do balcão antes do Cu de Aço meter-lhe o porrete na cabeça?


Nesta breve interação, vimos o DM fazendo uma reivindicação ficcional a respeito do personagem do jogador, quando diz que ele deve conhecer de rum o suficiente de acordo com a tradição do local onde nasceu, e vimos também o jogador reivindicar quando fala de um balcão que ainda não tinha entrado no diálogo criativo. 

Como as duas coisas faziam sentido e tinham verossimilhança, tanto o jogador permitiu que o mestre trouxesse uma verdade sobre seu personagem, quando o mestre permitiu que o jogador trouxesse uma verdade sobre o ambiente, ambos abrindo mão do controle ficcional, dando prosseguimento ao jogo.

Por outro lado, mestres e jogadores podem, dentro de seus papéis no jogo, realizar veto ou controle de verossimilhança, sem qualquer prejuízo de agência dos demais, pois estão cuidando de suas atribuições na divisão assimétrica de papéis no jogo.





Veto e Controle de Verossimilhança

Uma reivindicação ficcional pode ser vetada pelos seguintes motivos.

  • Por qualquer participante, ao fazer o controle da verossimilhança do mundo.
  • Pelo mestre, ao construir e gerir o mundo e os NPCs em virtude do melhor desafio.

  • Pelos jogadores, ao desenvolverem seus personagens.


Vamos para alguns exemplos.


Jogador: Eu corro até a tina cheia d’água do lado de fora da taverna, onde os cavalos ficam amarrados, e despejo a água na mesa, em cima do tampo flamejante.

DM: Quando você corre para fora da taverna, para ver se encontra alguma tina, não acha nenhuma. Lembra que há uma seca severa nestas bandas e a água, ao contrário de cerveja, tem sido artigo controlado?



Aqui os participantes realizam o controle da verossimilhança, através de um veto a uma reivindicação ficcional. Em outro momento, o mesmo diálogo poderia ocorrer desta forma:


DM: Vocês testemunham as portas de pedra se fecharam à frente e nos fundos do salão. Na mesma hora, de buracos no teto, começam a verter quantidades brutais de água.

Jogador: Vou até o centro do salão, onde tem um imenso ralo com um tampão de pedra em cima. Vou destampar para poder drenar a água.

DM: Você olha para o centro do salão e percebe que não há nenhum ralo, ok? É visível que a água começa a acumular e, sem escoamento, encher o salão.


Aqui o mestre trouxe um desafio de armadilha hidráulica. 

Faz parte deste obstáculo o desenho especial deste ambiente, feito propositalmente de forma que a água não seja drenada, para que a cheia mate os ocupantes do salão afogados. Por mais que o desafio proposto deva admitir amplitude de soluções, o mestre pode vetar reivindicações ficcionais feitas pelos jogadores fora de sua alçada, que mitiguem o desafio como proposto, sem qualquer prejuízo da agência do jogador. 

Neste momento, ele exerce o controle do mundo de aventuras, como é de sua função, e não permite que o jogador estabeleça que, no centro do salão, haja um ralo que de forma trivial e até sem sentido poria fim ao desafio que a armadilha propunha.

Outro exemplo, agora.



Jogador: Quando meu personagem vê a vila onde nasceu em ruínas, ele se apressa para a região onde morava, em busca de sua antiga casa.

DM: Você encontra e consegue vislumbrar, dentre os escombros, a ossada dos seus 7 irmãos espalhada sobre as pedras.

Jogador: Devem ser ossos de outras pessoas, pois meu personagem era filho único.

DM: Ok, recalculando a rota. Você percebe que devem ser ossos de estrangeiros, possivelmente invasores, dadas as características das roupas que vestiam que, mesmo rotas e podres, são claramente de um povo diverso daquele que vivia aqui e que estava fortemente armado.


Aqui o jogador vetou uma reivindicação ficcional do mestre relativa a seu personagem, que é de sua alçada. Ele havia decidido que era um traço importante de sua personalidade que ele não gostava de dividir suas coisas com ninguém porque sempre foi mimado pelos pais, que só tiveram ele como filho, sendo um ponto importante de seu desenvolvimento.

No próximo post vamos estruturar esta conversa melhor, percebendo o funcionamento geral do diálogo criativo do jogo e suas reivindicações ficcionais.














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