Manifesto Oil Fantasy #14: Narrativas Emergentes



Você já ficou triste porque planejou um arco de redenção ou decidiu que se personagem se tornaria uma grande lenda, matando um dragão, e só experimentou frustração porque ele simplesmente virou pizza, sob o brutal tacape de um gigante da colina?

Agora que já vimos no Manifesto Oil Fantasy todas as questões relativas ao desafio e como ele influencia a postura dos participantes, podemos abordar dois reflexos deste tipo de jogo: as narrativas emergentes e o worldbuilding, a começar pelo primeiro. Vamos falar agora sobre as histórias que emergem deste tipo de jogo baseado em desafios.


Fatos ficcionais


Lembrando o que já abordamos em nossos fundamentos: Oil Fantasy propõe jogos focados em desafios, não em contar histórias. Apesar disso, fatos são gerados na ficção a partir de uma construção mimética, de uma simulação e, a partir deles, narrativas possam ser percebidas quando se olha em retrospectiva.

O jogo no estilo Oil Fantasy promove a construção de situações, que evoluem conforme os jogadores tentam resolvê-los, gerando fatos ficcionais. 


Narrativas Emergentes

Podemos estabelecer, aqui em nossa conversa, que narrativas, falando de forma geral, são criadas quando relacionamos e colocamos em perspectiva fatos reais ou ficcionais. É a forma com que nós, humanos, damos significados a estes acontecimentos, dando a eles um sentido, com intencionalidade.

Uma curiosidade sobre isso é que determinados fatos, reais ou ficcionais, podem ser colocados em perspectiva de diferentes formas, alcançando assim narrativas diversas, comportando diferentes intencionalidades.



Quando dizemos que durante uma partida de RPG vários fatos ficcionais são criados, é natural que quando as pessoas os observem, elaborem narrativas. Alguns jogos gamificam este processo, fazendo com que os jogadores construam uma história em conjunto. Neste caso, os participantes chegam a uma narrativa única quando o jogo acaba, fruto do significado que construíram jogando. 

Um bom exemplo é o jogo conhecido como Fiasco. A narrativa já é construída conforma se joga, e as intencionalidades dos jogadores são colocadas em arena conforme os participantes percorrem suas etapas e suas mecânicas, chegando a uma síntese no fim que revela como terminou cada personagem.

No estilo Oil Fantasy, por outro lado, as dinâmicas de jogo produzem fatos ficcionais a partir dados desafios vivenciados, e não há momentos do jogo em que haja uma construção narrativa única proposta pelo jogo, compondo as vontades criativas dos envolvidos. Conforme jogamos, produzimos ficção que será livremente colocada em perspectiva por cada jogador, participante e observador, somente porque é assim que humanos fazem quando lembram dos fatos, e não porque este é o objetivo do jogo como já vimos aqui no blog em Manifesto Oil Fantast #02: Objetivos

Construções narrativas diversas acontecem naturalmente a partir deles, seja dentro do jogo, quando os jogadores interagem com o mundo e NPCs, e precisam dar suas versões dos fatos, ou no boteco, no seu blog, no seu grupo de whatsapp, com base nas tretas que rolaram na mesa.


Narrativas embutidas

Os defensores mais ardentes da narratologia certamente dirão aqui: jamais escaparemos de produzir narrativas, mesmo quando não queremos. Esta visão não está errada, afinal de contas essa produção é inerente à nossa forma de ler os fatos, reais ou ficcionais, então é certo que nosso jogar também produz narrativas com intencionalidade, mesmo seja um reflexo.

É inegável que no D&D clássico - que é o jogo de onde partimos com o estilo Oil Fantasy - há uma narrativa geral que é produzida, que alguns chamam de narrativa embutida. A mortalidade de seu combate e a forma como é feita a distribuição de pontos de experiência para a melhora dos personagens até se tornarem muito poderosos, a partir principalmente do resgate de riquezas, aponta para uma possibilidade narrativa muito clara.




Podemos dizer que o Dungeons & Dragons antigo produz histórias de caça ao tesouro, nas quais  aventureiros começam frágeis e sem muitos recursos mas, através da gestão de riscos e consistente exploração dos ermos e de masmorras, repletas de obstáculos mortíferos e criaturas perigosas, começam a acumular capital e recursos, se tornarndo um fator político na região em que se aventuram, até se tornarem expoentes da sociedade: lordes seus reinos, arqui-magos, sumo-sacerdotes, e líderes de guilda. Ou morrem nesse processo.

Há outras leituras mais profundas da dimensão narrativa do jogo, que trazem uma semiótica de esforço civilizatório e destino manifesto, exploração do meio ambiente e de povos nativos representados como monstros essencialmente malignos, e suas riquezas. Devemos estar atentos às narrativas que nossos jogos imprimem e não devemos fugir de nossas intencionalidades no jogar.


Ferramental

De todo jeito, é evidente que o D&D clássico não traz um ferramental mecânico para que os participantes construam essa história dentro de uma lógica diegética, de contação de história e construção narrativa com intencionalidade, como fazem os storygames: ele o faz de forma incidental, a partir de um jogo mimético, de um ambiente simulado em sua verossimilhança e isso é muito empolgante. 

Os jogadores podem tomar decisões morais e viver dilemas interessantes que, como já vimos aqui no blog, podem ser utilizados como teor para desafios complexos, em vez de estarem atados a uma relação lúdica na qual suas decisões estão sempre corretas, protegidos por um jogo no qual o game designer propõe uma narrativa embutida na qual os personagens principais são bons e, blindados de erros, estão sempre do lado certo.

As ferramentas do D&D antigo nos servem para a construção de desafios interessantes e arbitrar a tentativa de superá-los. Sua preocupação e intencionalidade está na sobrevivência e na superação de problemas, e não na construção de uma narrativa específica.

Neste processo, os fatos ficcionais trarão a possibilidade percebermos muitas narrativas, sob perspectivas diversas, portanto os envolvidos podem fazer leituras críticas e profundas do que puderam vivenciar através de seus personagens, naquela experiência mimética.


Sem Plot Armor nem Marmelada

Em Oil Fantasy, nenhuma narrativa idealizada servirá de garantia de triunfo e proteção. Nenhum personagem deixará de morrer ou será salvo do fracasso porque seu arco de redenção ainda não foi cumprido ou porque talvez ainda tivesse algum papel narrativo a percorrer, nas expectativas de algum participante.




Você pode até ambicionar que seu personagem se torne um rei, mas não deve ficar chateado se ele morrer ou se seus planos falharem, porque a aventura pode tomar rumos bem diferentes. O mestre não tem qualquer qualquer responsabilidade de defendê-lo do fracasso ou da morte. Como visto, seu compromisso é com bons desafios, que garantam a agência do jogador e estimule um fluxo criativo na mesa conforme os jogadores tentam superá-los.

Uma vez estabelecidos bons desafios, o mestre deve imprimí-los de forma contundente para que os jogadores tentem se sobressair com seu melhor; tudo dentro das regras, jogado às claras. Desta dialética sutil virá uma ficção emergente, oriunda do jogar, para muito além daquela história que você porventura tenha idealizado. Admita e admire o incerto. As conquistas que se alcança conforme se vivencia a possibilidade do fracasso são muito mais significativas do que aquelas pré-estabelecidas, garantidas.


Narrativa como Ferramenta

O estilo Oil Fantasy, portanto, não é avesso à construção narrativa, ele a percebe apenas como reflexo. Isto não quer dizer que não influencie no jogo. Os participantes estão o tempo todo dialogando na ficção - a respeito de seus feitos, dos acontecimentos passados e do que projetam para o futuro - e fora dela também, quando lembram de tudo que aconteceu na mimese, de forma que as histórias que percebem são trazidas novamente ao jogo e o impactam.

Além disso, o mestre cria narrativas para gerar interesse nos problemas que propõe, portanto elas também são utilizadas como ferramentas orientadas à atividade principal do jogo, como entendemos. Construir a história de uma espada mágica, a trajetória de vida de um cientista louco que lidera uma rede de paranóicos que lutam contra uma grande conspiração ou entender tudo que já fez e quem é o misterioso hacker, que oferece por um preço módico um banco de senhas de uma megacorporação - isso tudo é construção narrativa que, em Oil Fantasy, é utilizada na construção de sentido para os desafios.

Poupamos o mestre da preocupação de presidir uma construção narrativa, conjugando as vontades criativas de um grupo de jogadores, sem nenhum ferramental específico para isso. O espaço assimétrico entre os participantes permite que ele se especialize na proposição de bons desafios e suas propostas narrativas seguem este fim.

O mesmo vale para os jogadores, que constróem narrativas quando detalham no jogo o passado do seu personagem ou quando contam seus feitos, no intuito de sentí-los mais vivos e verossímeis, colocando em perspectiva os fatos ficcionais produzidos, ou mesmo quando atuam contando histórias do mundo e de NPCs quando o desafio não está tracionando o jogo e o mestre compartilha o controle ficcional, postura que explicamos no post anterior do Manifesto Oil Fantasy.

Podemos concluir, portanto, que a construção narrativa em jogos de oil fantasy comporta uma dimensão incidental, reflexo do jogo, e outra funcional, no sentido de ajudarem na construção e superação de desafios, ambas emergentes do jogar.

No próximo post, abordaremos outro fenômeno que também vibra nestas mesmas dimensões: o worldbuilding - a construção de mundo.










 

 

 

Comentários

  1. Ainda que jogadores dos RPGs mais modernos possam se sentir "castrados" nessa perspectiva de privilégio das narrativas emergentes em detrimento das narrativas planejadas, há que se convir que num jogo que se pretende desafiador e até certo ponto simulacionista, qualquer outra forma de jogar seria irreal. Nada é mais realista do que um mundo que está cagando pros seus planos - e nada é mais desafiador.

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    1. É bem por aí, cara... cada jogo brilha de um jeito. Oil Fantast busca fazer o D&D& brilhar à sua maneira, oferecendo o que tem de melhor, na nossa percepção =)

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  2. Exelente texto, muito bom ver discussões mais profundas sobre narrativa no nosso hobby!

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    1. Valeu grande Ícaro, obrigado pelo retorno, my friend =)

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