Manifesto Oil Fantasy #16 - A Lei da Mesa

No último post do Manifesto Oil Fantasy, vimos que a construção de mundo a criação narrativa são duas agendas de jogo acessórias, pois os fatos da ficção, nesses dois âmbitos, são gerados para que desafios sejam propostos pelo mestre, direcionando obstáculos e problemas aos jogadores.

Agora é hora de mergulhar um pouco mais nas leis que regem tal processo criativo, de acordo com a nossa visão. Para começar, vamos entender quando uma ficção se torna realidade no mundo de aventuras. É a Lei da Mesa.




A Lei da Mesa

Você pode escrever, planejar e idealizar o que quiser; a ficção é gerada apenas durante a sessão de RPG, nunca fora dela. Esta é a Lei da Mesa. Só se torna ficção no mundo de aventuras o que a mesa vê.

Todos os fatos da ficção são gerados em jogo, nunca fora dele. Só passa a ser verdade ficcional o que aparece no diálogo criativo, em sessão, entre os participantes.

Sabe aquele jogador que cria todo um antecedente para seu personagem, escrevendo quinze laudas de texto informando a infância, os traumas, os desafios e conquistas que vivenciou até o início da aventura?

Sem dúvida isso pode ajudar a construir em sua cabeça a ideia do personagem e permitir uma conexão inicialmente mais íntima com sua personalidade, mas é importante deixar claro que, em Oil Fantasy, nenhum daqueles fatos previamente estabelecidos serão verdade até que apareçam em jogo, na sessão.

Desta forma, só será verdade que Belmiro Tetéia foi campeão de sinuca até tal fato aparecer na ficção, seja por um relato do próprio personagem, seja por um troféu que ostenta, seja pelo relato de um oponente vencido. 

O mesmo vale para a preparação do mestre. Suas anotações não cravam realidade ficcional até que entrem em jogo, de forma que de nada adianta ter planejado todo o conteúdo de um cofre imenso, cravado na parede do Templo Filial de Fortuna; o que há lá dentro só será conhecido quando efetivamente aberto ou, indiretamente, por relatos.

Boatos e Lorotas

Você pode estar se perguntando neste momento: e se Belmiro Tetéia for apenas um loroteiro, em vez de campeão de sinuca? E se os relatos sobre o conteúdo do cofre no Templo Filial de Fortuna forem falsos?

Boatos e lorotas têm existência própria e se tornam verdades apenas como mentiras que são, mas de fato não vinculam realidade, apenas se colocam como indícios ou falseamento do que virá a ser real ou não no mundo de aventuras.


Não é porque um bêbado atestou a perícia do Tetéia que ele de fato é o melhor jogador de sinuca da área. Pelo contrário, ele pode ser péssimo, e isso só será descoberto de verdade quando posto à prova. O mesmo vale para o que teria dentro do cofre.



Indícios

Vale lembrar, porém, que determinado fato da ficção pode aparecer em jogo por meio de indícios. Rumores verídicos, comentários, antecipações descritivas e outros reflexos de sua existência de certa forma o constroem como verdade.

Seria estranho que os indícios não levassem a nenhuma verdade a eles correspondente na ficção, tão estranho quanto se a mesma verdade não construísse qualquer sinal de sua presença.


Por mais que todos os indícios que apontavam para um dragão nas redondezas possam falsear a existência de uma serpe parruda, as evidências existem concretamente, na ficção, e apontam para a presença de uma besta predadora de grande porte com características similares, então ela vai tomando forma conforme seus indícios vão se concretizando.

Se há um Urso Coruja constantemente rondando uma região, é de se esperar que deixe vestígios de sua passagem pelos galhos e arbustos da mata, que imprima pegadas no solo, que marque território, dispute território com outros predadores e cace habitualmente em um determinado espaço. Trabalhar estes indícios sobre sua presença constrói verossimilhança, que é base da construção de um espaço mimético interessante para o jogo, que informará largamente o desafio.

Em outra situação, considere que o mestre tenha decidido que nas bases de uma imensa montanha próxima, haja as ruínas de um antigo povo anão e que lá será uma boa fonte de desafios para sua campanha. Pode ser que ele queira dar indícios sobre a presença deste local com estátuas antigas, abandonadas, runas marcando imensas rochas na paisagem e outros vestígios deixados pelos antigos habitantes da região.

Agora imagine que o mago da torre próxima da vila tenha o costume de, de tempos em tempos, raptar jovens rapazes que nunca mais voltam, e que o mestre tenha decidido construir um desafio interessante em cima disso. Para atrair os jogadores, ele pode lançar mão de boatos que, ao mesmo tempo, contem sobre a crueldade do sequestrador e das riquezas que provavelmente guarda em seus aposentos, construindo interesse narrativo que sirva de gancho.

Oil Fantasy é um estilo de jogo que passará necessariamente pela exploração pormenorizada do mundo de aventuras e trabalhar com a gestão de informação é parte considerável do trabalho do mestre. Podemos dizer seguramente que lidar bem com indícios ajuda o mestre a construir e conduzir bons desafios mediante o desenvolvimento da verossimilhança, de worldbuiding e de narrativas.


A realidade das planilhas

Mas quanto ao equipamento dos personagens dos jogadores, digamos, no Dungeons & Dragons e outros RPGs que tem planilhas de itens. Seria correto dizer que os cravos de metal em suas mochilas não existem até que apareçam em jogo?

De maneira geral, nos inclinamos logo a dizer que, se estão na planilha de personagem, aquele itens existem. Não estaria de todo incorreto dizer que se não foi citado em jogo, na mesa, não existiria ficcionalmente, de acordo com a Lei da Mesa, mas há aqui um detalhe importante: eles exercem efeitos mecânicos e ficcionais e através deles se concretizam no mundo de aventuras. Os jogadores agem contanto com os itens de suas planilhas, de forma que geram dinâmica de jogo e influenciam concretamente em suas decisões.

A própria decisão de entrar em sessão com seu personagem carregando 15 metros de corda e cravos de ferro significa que o jogador escolheu encher sua mochila com isso e que vai arcar com o peso destes itens impactando em seu movimento e no próprio diálogo criativo. Afinal de contas, caso caia de um barranco direto em um rio, o mestre poderá arbitrar a chance de perder tais itens na confusão, ou mesmo do dano ser maior caso haja metais e outras coisas que possam colidir e causar ferimentos durante a queda.

Este é o problema em abordagens abstratas a respeito de equipamento e recursos. 

Caso o mestre deixe que o jogador decida sobre seu equipamento no meio da aventura, pode ser que ele resolva que seu personagem possui determinado item, sem que ele tenha gerado efeitos na ficção até então. 


Seria o caso de Fritz, o Piromaníaco, que fazendo jus à sua alcunha, decide que seu personagem carrega consigo três ânforas de óleo altamente inflamável, ignorando o fato de que quase veio a óbito frente uma armadilha de fogo que teria, obviamente, colocado em risco de explosão o seu carregamento.





Anotações do mestre

Por outro lado, as anotações do mestre não configuram realidade até entrarem no jogo efetivamente. É importante, inclusive, que ele materialize os elementos da ficção de forma ampla, desde seus indícios e reverberações, para que respeitem a verossimilhança e a agência dos jogadores em seu pilar de informação.

Isto é particularmente relevante em mesas com mais de um mestre. Se um deles desenhou em suas anotações uma torre de um mago nefasto em uma colina que ainda não foi explorada pelos jogadores, nem houve indícios surgindo em sessão, outro mestre quando os jogadores passarem pela colina pode livremente decidir diferente, que ali há uma imensa estátua de um Rei Anão, e que não há nenhuma torre ali. Podem até mesmo os jogadores, atuando sem tração do desafio, definir que ali há apenas uma límpida fonte de águas termais.

Por outro lado, se o mestre que planejou a torre do mago na colina já soltou indícios de que ela de fato está lá e construiu a verossimilhança deste ambiente, não pode mais o mestre seguinte negar a existência de algo no local que seja minimamente condizente com as informações passadas, por questões de respeito à agência do jogador, resguardada obviamente a possiblidade dos indícios serem falsos, como comentado antes.

As anotações têm apenas natureza de preparação para o mestre, necessitando que os elementos planejados apareçam em mesa para que possam existir.


O Lumpley Principle


A Forge se preocupou com tal gestão da verdade dos eventos ficcionais e formulou longa discussão que confluiu no conhecido Lumpley Principle, também chamado de Princípio Baker-Care, por conta das formulações de Emily Care e Vincent Baker, que ligaram isso intimamente aos sistemas de jogo de forma bem ampla.

Segundo Care, os eventos ficcionais do jogo em um RPG são dependentes do consenso dos participantes para serem aceitos. Todas as regras formais e informais, procedimentos, discussão, interações e atividades que formam tal consenso dizem respeito ao sistema usado em jogo.

Nas palavras de Baker, quando alguém declara que algo acontece em jogo, tal coisa se torna verdade quando todos concordam sobre sua existência, sob nenhuma outra condição.

Ao largo da importante discussão sobre a natureza dos sistemas e a relação deles com a gestão das verdades ficcionais em jogo, em Oil Fantasy nos preocupamos com a forma com que a ficção é gerada, principalmente no diálogo criativo entre os participantes. 

Será sobre isso o próximo post do Manifesto Oil Fantasy.












Comentários

  1. Excelente proposta de World Buildin!. Bem coerente, ousada e, o melhor de tudo, dando primazia a emergência narrativa. Muito bom. A Mesa é a Lei!!! 🔨🔨🔨

    Duas perguntas:

    1) Nessa proposta fica subentendido que o bookeeping do jogo precisa ser bastante afinado e bem feito. Logo, seria válido compartilhar esse BK das verdades do jogo com todo o grupo? Ou seja, os jogadores tb ficariam responsáveis por registrar as verdades do jogo?

    2) Os momentos de downtime e de interações "fora do tempo real" também são tutelados pela Lei da Mesa? E aquele textinho maroto que o mestre manda para os jogadores explicando o cenário pelo whatsapp antes de começar o "jogo jogado" também é aplicada a lei à ele?

    Valeu pela reflexão Balbi, galera do Café com Dungeon e Oil Fantasy. As propostas e brisas de vocês trazem possibilidades bem enriquecedoras para o nosso querido RPG rasteiro!!

    😁👏👏👏

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fala Rogério! A mesa é a lei! hahahaha

      Vamos às respostas.

      1. Vale a pena fazer book keeping sim, mas essa responsabilidade de controle de verossimilhança e consistência do mundo cabe a todos os participantes, igualmente. Ainda vamos abordar isso em Oil Fantasy, dentro do contexto do diálogo criativo.

      2. As interações miméticas, em downtime ou não, quando feitas em mesa, constituem realidade. Mesmo que decidido fora, precisa ser ancorado na ficção de toda forma, no mínimo para garantir o impacto dessas decisões, sem prejuízo de agência. Já o acordo social tratamos como controle de expectativas, mas não como criação de ficção: o grupo pode ter combinado antes do jogo que religiosidade será importante na campanha, mas se o tema nunca aparecer em mesa, faça-se a Lei da Mesa. =)

      Excluir

Postar um comentário